
Os olhos fundos pintados com olheiras escuras entregavam sua condição. As lágrimas irromperam incoercíveis, encharcando seu rosto, transpirando dor. Era choro de amor mal vivido, rompido, velado e abandonado. Era choro de amor que precisava ser enterrado.
Andou pelas ruas a esmo e atravessou movimentadas esquinas desconectada da real velocidade das motos, dos carros, do mundo – um desprezo inconsciente pela vida. Seu olhar vazio enxergava apenas as memórias que a impediam de seguir em frente. Que a obrigavam a parar nos sinais vermelhos. Ingenuamente percebeu-se olhando para os lados, em uma tentativa ludibriosa de reconhecer conforto nos semblantes entalhados pela cidade grande. “Um sorriso atrai outro”, pensou. Mas não foi o que se sucedeu e ela continuou sua marcha, com passos que a arrastaram para um lugar onde pudesse se sentir segura, onde o calor abrigado aquecesse seu corpo e arrefecesse sua dor.
Sentou-se em um café e pediu ao garçom um americano. A grande janela dava vista a uma praça onde crianças brincavam e idosos jogavam xadrez. Uma senhora maltrapilha jogou uma guimba no chão. O idoso deu xeque-mate e o adolescente gritou “gol”. Ambos comemoraram suas minivitórias. E ela, ali sentada, não teve tempo de pensar no que poderia celebrar porque a senhora da guimba posicionou-se à sua frente, oferecendo-lhe um cigarro e pedindo um trocado. A pequena transgressão pareceu-lhe cair bem à luz do dia. Deu o primeiro trago e olhou para a velha sob a névoa da fumaça. Seguiu-se um pigarro, uma respiração profunda e todo um rosário a desfolhar.
Mas o ar permaneceu preso e nenhuma palavra se fez ouvir. A velha entendeu que as rugas do olhar estavam cravadas no coração e solidária, despediu-se oferecendo-lhe solitude. E ela ali, com seu café americano, engoliu a ilusão e sacou do bolso o objeto tecnológico que a colocava em contato com sua dor. Em um gesto de coragem, deixou de segui-lo. Nas redes. Na vida. Fechou as cortinas daquele palco e abandonou a plateia. Deu o último gole.
Voltou pelo mesmo caminho, ainda observando o xadrez, as crianças, e os sorrisos que não recebeu nos sinais vermelhos. Mas de alguma forma, entendeu-se mais forte. Mais humana. De carne e osso. Desconectou-se, desatando suas amarras. E descobriu-se livre: sua maior vitória.
Aline Serfaty
facebook.com/contocurtasetcetera
Revisado por Fabiana Serra
Lindo! Amo seus contos.Mexem com minha emoção.
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Que emocionante! Que encadeamento narrativo incrível, como sempre. E como sempre, também, surpreendente! Parabéns, sempre! Você é uma tecelã de palavras, Aline querida!
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Adorei “tecelã de palavras”!! Obrigada!! Quanta alegria te ver sempre por aqui!
Bjs
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Adorei ! Como sempre ! 🥰
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Obrigada, Luisa!! Que bom te ver por aqui!! Bjs
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A faceta mais perniciosa da relação interpessoal é a dependência tipo compulsão-abstinência, prolongada pelas amarras das redes de relacionamento digitais. O bloqueio do ex nas mídias é como o corte do cordão umbilical que liberta para uma nova vida.
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Romper é difícil. Mexe com muitas emoções. Divide. Dá angústia. Dói. A gente inventa desculpas pra não sair do ciclo viciado. Somente quando se decide virar o jogo, deixar pra trás o que não serve mais, é que se consegue experimentar novamente. Volta o tesão pela vida. É como renascer.
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Sim… Rompe-se porque já não se aguenta a dor. Um passo de cada vez, sempre adiante.
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Aline, que delicia ler seus contos. Minha irmã me contou do seu blog e me falou um pouquinho da sua sensibilidade. Fiquei muito feliz por te reencontrar por aqui. Parabéns!!!!
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Obrigada, Júlia! Fico feliz que minhas palavras te toquem e que esteja gostando das curtas histórias. Bjs!
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