Em 2006 conheci Abed, um francês de origem argelina. Magro, alto, com cabelos negros encaracolados e pele morena, trabalhava gerenciando os aluguéis dos apartamentos de sua mãe. Fechamos contrato e poucos dias depois, me instalei no estúdio, localizado em uma silenciosa rua, no centro de Paris. Um sofá-cama e uma pequena mesa para duas pessoas era o que mobiliava o espaço. Nada mais. Passadas algumas semanas, encontrei roupas de cama e utensílios domésticos em minha porta, gentilmente cedidos por ele, contrariando a vontade de sua mãe. Frequentemente os via juntos, inspecionando suas propriedades. Altiva, trajava-se com elegância e utilizava-se deste e de outros artifícios para impor sua autoridade. Soberba e ríspida nas parcas relações interpessoais, causava-me desconforto, invariavelmente. Ambos mantinham um enlace conturbado, repleto de cobranças e provavelmente perpetuado por necessidades alheias ao meu alcance.
Em pouco tempo habituei-me à rotina de acordar relativamente cedo, andar até o metrô, chegar ao estágio e voltar ao final do dia para o cubículo onde tudo começou. Via-o circulando pelas redondezas quase todos os dias, entre conversas com o dono de uma loja de tecidos ou com seu tio, que morava no estúdio ao lado. Um dia, contrariando o tabu cultural, convidou-me para um café na deliciosa padaria da esquina e contou-me um pouco de suas aventuras pelo continente europeu, com uma namorada suíça, nada convencional. Sem pontos turísticos ou hora para acordar, a regra diária era o prazer, encontrado no álcool e em outros entorpecentes. Finalmente, entre um cigarro e outro e o café que pediu, percebi uma espontaneidade enterrada pelo peso da cobrança diária. Vivia sua rotina enfadonha, com gosto de cigarro e café amargo, negando confrontos e desconfortos. Relacionava-se com a mãe carregando consigo suas defesas de menino, que lhe impediam de nascer novamente para um mundo diferente do que ela sonhou.
Alguns anos depois, voltei àquela cidade e ao prédio onde morei. Abed estava lá. Mais magro, mais velho, com rugas e sem viço. Cumprimentou-me, educadamente, e com pesar, seguiu adiante, até perder-se nas ruelas de Paris, buscando a saída do labirinto de dissabor que sua vida se transformou. Seus vínculos parentais vendavam-lhe os olhos e o mantinham na mesma trilha. A única, para ele visível. Até o fim.
Aline Serfaty
Que conto espetacular, muito bom! Adorei “Relacionava-se com a mãe carregando consigo suas defesas de menino, que lhe impediam de nascer novamente para um mundo diferente do que ela sonhou”. Você entende muito da alma humana, Aline! Beijos!
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Cecilia, um elogio desses (e vindo de você), enche meu dia de alegria e injeta o ânimo necessário aos novos contos. Muito obrigada. Beijos!
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Muito obrigada, Cecilia!
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Texto perfeito! Fluido, super bem escrito, adorei, Aline! Bjs
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Obrigada, Toia! Se puder, mostre para o bi Hélio, por favor (este e os que ele ainda não leu). Saudades. Bjs!
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Abed e sua mãe…nosso cubículo…nossos encontros e desencontros (predominando o primeiro, claro!)…nossas inúmeras curtas…
Lindo texto, ainda mais sabendo o contexto. Parabéns mais uma vez. Saudades amiga!
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Texto perfeito. Senti muita pena do rapaz.
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