Sua rotina era de poucas alegrias e poucas tristezas. Assim como a dele. Vestia-se com pudor, maquiava-se com discrição e falava baixo. Para beata, faltava-lhe apenas o terço. Parecia pertencer ao século passado e não ao tempo presente. Era reta e por isso, negava os frequentes olhares de seus colegas, que esforçavam-se para arrancar-lhe sorrisos, sonhando com uma furtiva escapada.
Dotado de poucos atributos físicos, ele destacava-se pela competência na profissão que escolhera. Surpreendeu a comunidade local, quando apesar da parca eloquência, fora requisitado para participar de um programa de rádio, no qual dava dicas de saúde.
Eram casados no papel, com regime de comunhão de bens e de ideias. Decisões divergentes suscitavam olhares de reprovação. Submeteram-se a um processo de fusão tão intenso que o duplo passara a ser único. Por fim, quando nada mais poderia ser pior, suas frases começaram a completar-se. Tédio. Viviam com a segurança conquistada através da morte das ideias discordantes.
Muitos anos se passaram e por isso, pensavam que o tempo os tivesse brindado com o profundo conhecimento de seus desejos. Enganaram-se. Brindavam à monotonia, com vinhos caros e envelhecidos. Eventualmente, exageravam. No álcool. Nunca nas palavras. E foi assim que ela percebeu que rezar não mais lhe trazia quietude. Que discordar era sentir-se livre. Própria de si.
Silêncio. Sentiam-se estranhos, diferentes, mas não sabiam o que fazer e nem o que dizer. Então, calavam-se. Um dia, deitada em sua cama, ainda com o corpo pesado pelo sono agitado, intermitente, soube que precisaria de uma nova roupagem de ideais para destilar em conversas informais, saboreando vanguarda. Aproveitou-se de súbita coragem e passou em uma famosa loja de maquiagem. Quis escolher um batom e disse à vendedora, quase soletrando: “Quero o ver-me-lho-pu-ta.” Assim, em um lampejo, decidiu que largaria a vida dois mais dois que há anos vivia. Comunicou o divórcio ao marido, que estupefato, sorriu. E concordou. Saiu, quase fugida e passou um tempo no apartamento de uma amiga, abrigada da chuva e de suas tormentas. Queria mudar-se. De cidade. De país. Ao final, um novo bairro bastou-lhe. Queria romper com o passado e anunciar que agora, respirava, com fôlego. Queria mais, muito mais e teve receio de se perder. Teve receio de acordar.
Levantou-se, olhou-se no espelho, reconheceu-se. Sem batom. Sem amiga. O marido ao lado, dormindo.
Sonhara e assim realizara, mesmo que por um breve instante, seus desejos, enterrados há anos. Percebeu que a procura por sua real identidade ainda seguia. Dia após dia. Largava vagarosamente o velho, dando lugar a um prazer diferente. Genuíno.
Ele acordou e olhou ao redor. Olhou-se no espelho. Nunca se descobriria. Não havia em sua alma o desconforto dos que almejam se entender. Tudo estava arrumado dentro de si. Engessado. Do alto de sua superficialidade, sabia que assim seria melhor. Então, concordava, monotonamente.
Naquela manhã, ela ligou o rádio e ouviu uma voz conhecida. Era o programa de dicas de saúde. Ele falava sobre algo que ela não deu importância. Abaixou o volume e sorriu. Renascia aos poucos, sem maquiagem ou perfume, levando consigo apenas o batom. Vermelho.
Aline Serfaty
facebook.com/contocurtasetcetera
Revisado por Fabiana Serra
Lembrou-me dessa minha poesia antiga( depois nos falamos sobre este que considero seu primeiro texto não auto referente)
CRIAÇÃO
No ultimo ato retocou-lhe com vermelho ,
A indicar que a pureza tem carne , tem paixão
Então vestiu-lhe de preto,
A revelar a possibilidade da dor e da morte,
E, com um leve sopro, comandou-a a andar ,
Apreciando de longe sua criação
E a devastação das almas visitadas .
Além do toquelho nada mais fez, nem precisava
Apenas descobriu-a,um pouco aqui , um pouco ali
E deixou o resto acontecer
CurtirCurtido por 1 pessoa
Como dá susto viver! Como os demais um conto arrebatador! Adorei!
CurtirCurtido por 1 pessoa