
Nunca a vira chorar. Seu semblante amável e sua voz rouca e calma imprimiam sua marca. Era daquelas pessoas que aparentavam estabilidade pétrea. Dessas que não admitiam curvas de emoções. Deixava as discussões acaloradas para os fracos. Esses emocionais que digladiam-se para defender meros pontos de vista. Ou aqueles que derretem-se em lágrimas diante de qualquer história de amor. Ela era forte. Não permitia permear-se por sentimentos que a fizessem perder tempo. Ou a cabeça. Meticulosa, deixava que seus objetivos comandassem seus atos.
Naquela noite, ela e outras quatro amigas decidiram ir a uma famosa balada da cidade. Ouviam e cantavam alto suas músicas preferidas, enquanto maquiavam-se com cores vivas, que ressaltavam olhos e lábios e compunham rostos nada angelicais. A cada gole, mais leve dançavam e arremessavam olhares nada discretos, flertando na pista de dança. Gostei dele, ela disse a sua amiga, demarcando o competitivo território da conquista. Pediu ao garçom mais uma dose – aquela que deixa a coragem aflorar e partiu para a ação. Surpreendeu-se ao deparar-se com esta mesma amiga, minutos depois, interagindo de forma íntima com o pretenso flerte. Continuou sorridente, dançando e bebendo até o final daquela noite, sem aparentar qualquer descontentamento, ensinando às outras, como portar-se diante do desapontamento e mantendo o controle sobre o caos iminente. Chegou em casa e afogou as mágoas no travesseiro, dividindo com ele, angústias e tristezas. Adormeceu.
O tempo passara, atropelando meses, anos. Mas ela pouco mudara. Parecia continuar adormecida para suas fraquezas. Escondia de si própria sua real natureza: a humana. Envolvia-se com homens bonitos, feios, casados, solteiros, jovens ou não. E enquanto suas amigas sofriam por paixão, ela mantinha-se leve, sem amores ardentes que a fizessem viver. Seguia encenando conquistas com sensualidade, abusando nos decotes que lhe exaltavam os peitos e no curto comprimento das saias que instigavam o imaginário alheio. Dizia às amigas que surpreendia seus pares ao mostrar-se indiferente e sem as comuns e enfadonhas expectativas femininas. Dizia também, que sumia, deixando-os confusos. Tomava para si o papel usualmente masculino e saía da intimidade de um quarto de motel dura, rígida, fria. Assim, sentia-se dominante, sexista, dona dos seus prazeres. Mal sabia que continuava dormindo. Mal sabia que os apaixonados não dormem.
Atuava e entregava aos outros apenas o superficial. Receosa de enxergar cor. De sentir dor. Contudo, eram poucos os que a criticavam. Os que percebiam o pouco que ela entregava. Por isso e pela contumaz simpatia, era frequentemente convidada para muitas reuniões sociais, escolhendo de forma não aleatória, as que frequentaria. Com foco, mantinha excruciante fidelidade aos seus propósitos. Se decidia não comparecer, contava uma de suas inverossímeis histórias, popularizadas na descrença coletiva. Fugia dos compromissos que pareciam nada acrescentar a sua vida. Ao seu dia. Apesar disso, incólume, seguia no coração de todos. Sem coração para mostrar.
Surpreendeu família e amigos quando anunciou o casamento, quase aos quarenta. Manteve-se firme na cerimônia, apegada à crença de que homens não choram. Sem lágrimas que embaçassem sua visão ou borrassem sua maquiagem. Seguia na mesma rota reta, sem curvas que a fizessem derrapar.
Há pouco tempo, deu à luz um menino. Disseram que emocionou-se e que até chorou. Coitada, perdeu a cabeça.
Aline Serfaty
Sensacional. Adorei o final.
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Muito,muito bom!
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