Nublado

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O dia amanheceu nublado. Ela levantou-se e percebeu que suas pálpebras pesavam e o raciocínio vinha aos solavancos, truncado, fruto da noite mal dormida. Naquela semana atormentada, a espera fora seu algoz. Desejava vê-lo novamente. Ansiava por romance e excessos. No entanto, tudo o que lhe restou foi ausência de corpo, voz e toque. Ele não aparecera. Olhando-se no espelho culpou suas imperfeições. Deitada na cama, pensou no que não deveria ter dito no último encontro. Horas depois, lembrou-se de outras possíveis inadequações. Naquela noite fatídica, ela fora ré do seu próprio julgamento e nada que pensasse poderia salvá-la da condenação iminente.

Não suportando mais a horizontalidade, decidiu levantar-se e interromper o desencadear de ideias. Lavou o rosto com água gelada e utilizou-se de outros rituais para sentir-se acordada. No trabalho, quis encontrar meios de desconcentrar-se do único tema que lhe vinha à cabeça. Olhou para o lado e procurou o colega flerte, na tentativa de distrair-se, mas até ele faltara. Foi à copa para tomar um café e ao primeiro gole, sentiu-o frio, amargo. Colocou mais açúcar do que habitualmente fazia, mas ainda assim o gosto não lhe apeteceu. Naquele dia, nada mais parecia dar certo. Por um momento, sorriu com o canto do lábio e pensou ser essa uma conspiração astral. Contudo, o gosto acre daquela bebida fria a fez voltar à realidade.

Desde que se conheceram, várias foram as vezes em que se encontraram, mas por razões que ela pouco compreende, não havia continuidade naquela história. O amor químico, que inicialmente acontecera de forma arrebatadora, esmorecera e com ele a expectativa de uma conjunção plena e duradoura. Soturno, ele sempre desaparecia levando consigo o que não era capaz de mostrar. Deixando com ela as desilusões e o desconforto do silêncio.

Ainda no trabalho, decidiu que precisaria ficar só. Dirigiu-se ao banheiro e olhou-se no espelho. Enxergou as rugas que marcavam seu rosto e que insistiam em lembrá-la do óbvio: brigas e agravos só acontecem no amor real, de carne e osso, vivido dia-a-dia. Seu par perfeito nunca foi real. Foi fugaz. Ainda assim, ela encontrou fôlego para pensar nos prazeres que não viveu ao seu lado, nas noites mal dormidas acompanhadas da solidão, ora barulhenta, ora robusta, preenchendo cada centímetro do seu leito. Era nos solilóquios que suas fantasias ganhavam substância e que as idealizações reinavam soberanas em seus pensamentos, afinal sonhar lhe aquecia o corpo nestes dias de outono.

Olhou-se mais uma vez no espelho e percebeu-se confusa, visceralmente presa à realidade e fiel aos seus devaneios. Naquela manhã, tentara exaustivamente enxergar o presente com claridade, mas era um dia nublado, desses que comprometem a lucidez.

Aline Serfaty

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Revisado por Fabiana Serra 

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