Fantasias

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elE retirou a camisa social do armário e vestiu sua fantasia de homem atencioso, ajeitando de forma simétrica a gola, buscando perfeição. Era desses cujos detalhes não poderiam passar despercebidos. Seguiu para o trabalho onde exercitava com maestria o foco no outro. Sempre solícito, rapidamente respondia às demandas alheias, que chegavam como pedidos verbais ou mensagens em seu aparelho móvel. Parecia excelente partido aos olhos daquelas que se regozijam com a segurança da resposta pronta. Vez por outra, para se desculpar de qualquer deslize, utilizava-se do jargão “tardo, mas não falho”.

elA acordou. Vestiu o que lhe serviu e partiu. O rumo era ditado pelos sonhos que sonhara e pelas ideias que permearam cada poro do seu corpo desde o primeiro dia em que se percebeu diferente. Seguiu em sua jornada aos solilóquios, exteriorizando às paredes do quarto ou ao finito espaço do carro o que em sua consciência transitava. E assim, fantasiada de fantasma, vagou por aí, dirigindo-se para onde estivessem seus novos valores. Não contava encontrar alguém que fizesse eco ao seu chamado mudo. Surpreendeu-se.

eLE soube de pronto que conhecera alguém especial. Seu coração, ultimamente acostumado ao ordinário, reconheceu luz. Vestiu a fantasia da casualidade e foi ao seu encontro no bar, com camisa e tênis descolados. Lá, ouviu o refrão da música romântica que repetidamente disse-lhe o que percebeu ter encontrado – há tempos, uma voz feminina não lhe parecia tão familiar aos seus valores, ao seu eu.

eLA no bar, olhou em seus olhos e viu-se refletida naquele homem. Desejou tê-lo para dele tirar o que valorizava. Desejou sê-lo para preencher em si, o que faltava.

ELES divertiram-se com vinho e boa conversa, leve, descontraída, uma verdadeira paquera. E no final da noite, quando a hora parecia pulsar ao relógio lembrando-lhes dos compromissos do próximo dia, restou-lhes a caminhada da volta, na qual tornaram-se cúmplices, pelo tempo da intimidade há pouco adquirida. Dali em diante, ele ficou diferente. Vívido, vibrante, inundando seus mundos com palavras sensuais, provocantes, doces que a fizeram crer que estava apaixonado. Dali em diante, ela também entendeu-se apaixonada. Degustaram o doce veneno que conturbara outras tantas almas, provando e aprovando cada minuto de sua existência. Perceberam-se em terreno baldio, arenoso, por vezes mágico. Perceberam-se. Despiram-se e nus pela primeira vez, revelaram o colorido dos seus corpos, entregando ao chão suas fantasias.

ELe: angústia. Ainda que profundamente marcado pela intensidade do que sentia, renunciou às cores. Abriu seu armário e dele retirou uma fantasia escura e árida. Deu fim ao que há pouco havia começado. Faltou-lhe coragem para continuar.

ELa: no exato segundo entre a palavra por ele proferida e a consciência adquirida, nenhuma fantasia lhe coube. O golpe duro provocou-lhe lágrimas. A decepção a fez compreender que juras de amor têm asas – voam. E em seu âmago, sentiu a disparidade entre o sólido e o líquido. Abandonou a conversa sem toque ou cheiro, dizendo adeus. Recolheu-se, procurando respostas e buscando naquela efêmera história os sinais que a levaram ao fim.

Ele: mudo.

Ela: agradeceu ao tempo que a ajudou a desconstruir suas idealizações, quebrando paulatinamente o fraco alicerce da paixão. Compreendeu que em seu mundo, histórias de amor dispensam fantasias. São corpos nus, pele a pele, trazendo à tona os mais profundos sentimentos – que se encontram – reconhecendo-se.

ele: distante, verbaliza algo sem muito sentindo para ela.

ela: aquieta-se e assume sua mea culpa por nunca ter-lhe dito o quanto a verdade, falada com a voz do coração, era seu norte. Seu mantra.

eles: calam-se. E guardam para si tudo o que tinham para dizer. Fim.

Aline Serfaty

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Revisado por Fabiana Serra 

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Pintura em aquarela feita por Fernanda Serra       

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8 comentários sobre “Fantasias

  1. O texto faz refletir sobre o quão intenso e frágil é o estado de paixão, que como um castelo de cartas, desaba sem pedir consentimento. A fúria da chama nos aquece, mas a lâmina fria nos apunhala pelas costas. Bravo!

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  2. Viver uma paixão é maravilhoso. Viver duas, três… nem se fala. E, se acabar, ficaram muitas histórias para contar um dia. Mas também existem outras formas de paixão às quais somos apresentados ao longo da vida e não nos abandonam: a arte, a música, o esporte, as viagens, a leitura, a dança…. e tantas outras. Paixão é tudo o que faça nossos olhos brilharem e o nosso espírito ficar nas nuvens.

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    1. Paixão é tudo de bom! E todas essas que você citou preenchem cada espaço do meu eu. No final, acredito que o melhor é vivermos apaixonados por nós mesmos, pela nossa essência. Isso me parece algo próximo à plenitude.

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