Dizem que a fé move montanhas. Cética, nunca acreditei… E sabia que não seria fácil me provarem o contrário.
Buscávamos silêncio e um restaurante, eu e meu amigo. Encontramos um de beira de rua, com enfoque natural, que parecia nos atender. Sentamos junto à janela, libertando-nos, momentaneamente, da escuridão que nosso trabalho requer. Luminárias coloridas e quadros com motivos esportivos decoravam o cenário. Apenas o som de uma televisão ligada com o noticiário local parecia perturbar o contexto praia/vida saudável. Ao redor, duas mesas ocupadas: uma com um casal de meia idade que se levantava para ir embora e outra, com um homem jovem, que almoçava sozinho e dava, entre uma garfada e outra, pequenas orientações gerenciais. Ele, muito simpático, aproximou-se e puxou conversa. Era o dono do estabelecimento e contou-nos um pouco sobre sua franquia recém estabelecida na cidade e outras, que ajudou a implementar, espalhadas pelo Brasil. Entre uma superficialidade e outra, resolveu aprofundar-se e nos confiou um pouco mais da sua história, como se há muito nos conhecesse. Jogara futebol profissionalmente e com a carreira em ascensão, teve seu passe disputado por dois grandes clubes europeus. No auge da juventude, ganhava a vida com sua brincadeira favorita da infância. Por questões que fugiram ao seu controle, não conseguiu a vaga no time profissional e despencou do alto de um abismo de insatisfação, enterrando consigo o sonho de menino. Deparou-se com uma realidade que jamais conhecera e que, do seu corpo opulento, roubou-lhe inúmeros quilos, afundando-o em depressão por longos cinco anos. Com fé, prometeu que curando-se, andaria de onde mora ao interior de São Paulo, rumo à igreja da santa devota, completando seiscentos e cinquenta quilômetros e selando com seus pés andarilhos o prêmio que seus pés jogadores não puderam lhe entregar. Orgulhou-se em dizer que não precisou de médicos ou medicamentos para, anos depois, recuperar-se e embevecido pelo feito alcançado, desprezou o valor que uma boa sessão de terapia tem. Pensando no pódio que não subiu e de frente para o altar que alcançou, retomou o controle que há muito perdera, da vida que deixara passar. Entregou à santa a responsabilidade da cura e retirou de si próprio o peso que carregava.
Comovida e sensibilizada, ainda com sua voz ecoando em meus pensamentos, percebo que nunca me entreguei à fé. Não de corpo e alma. Costumo entregar-me às relações, às noites de lua cheia, aos pores-do-sol, às trilhas com cheiro de mato, ao mar. Mais do que tudo, entrego-me, frequentemente, aos devaneios e cultivo em mim a loucura dos sãos, que andam por aí, contando passos e histórias.
Aline Serfaty
Muito legal! Os contos têm sempre uma “quebra” surpreende o leitor/a leitora. E o narrador que se mistura à trama de modo periférico, mas fundamental.
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Cecilia, perfeito comentário! Nunca tinha olhado por esse lado!
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Leitura leve e bem agradável Aline. Descreve o cenário de forma detalhada ao leitor sem ser cansativa. Parecia que eu estava na mesa ao lado rs. Bem legal.
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