O tempo passara e envelhecera. Ainda não era decrépita, mas as rugas em seu rosto denunciavam sua idade. Naquele dia, sentada na varanda de sua casa, olhando fixamente o que nem percebia, deixou-se recordar. Em segundos, retornou à juventude e se lembrou dos dias felizes em que, com ele, compartilhou o cotidiano. Tantas risadas. Não tardou a reconhecer que encontrara alguém cujo interior era constituído de luz, não de ar.
Viveram em harmonia por alguns anos até que se separaram, porque assim se fez necessário. A expectativa de amor eterno deu lugar à frustração. E os desencontros finalmente fizeram-na entender que permanente são as mudanças, que entram céleres, derrubando dogmas e instaurando desgovernos.
Ainda ali, com a taça de vinho na mão, confusa e levemente entorpecida pelo álcool ingerido, pensou ter ouvido a campainha e levantou-se para se certificar. Olhou pelo pequeno buraco redondo da porta, cujas lentes cabiam exatamente em um de seus olhos, e enxergou um homem. O movimento da maçaneta deu entrada a quem lhe trazia um envelope de papel pardo e sem remetente. Com a faca, cortou a fita adesiva que o mantinha fechado e viu a folha de papel onde se lia: “Ainda há tempo?”
Encontraram-se em um lugar calmo e discreto. Não colocaram música, como teriam feito muitos anos antes. Preferiram outra sinfonia. Abraçaram-se e o acolhimento gerado pelo afago da pele trouxe à tona tantos sentimentos que não puderam entender de pronto. Passaram a noite em claro, realizando pequenas transgressões, regadas aos habituais entorpecentes de sua época, e utilizando o cigarro como digestivo para o que viveram.
Por fim, despediram-se. Ela, então sozinha e de frente para o espelho, percebeu-se esticando as dobras do rosto com as mãos. Quis parecer mais moça, mas lembrou-se da finitude do tempo. Deu de ombros e ainda vendo seu reflexo, sorriu.
Na portaria do prédio, ninguém entendeu quando aquela distinta senhora saiu do elevador gargalhando. Pareceu-lhes maluca.
Ela, caminhando com altivez pelas ruas do seu bairro, soube que encontrara novamente a insanidade que permeava sua existência. Voltara a ser jovem.
Aline Serfaty
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Revisado por Fabiana Serra
lindo!
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Obrigada, Laura! Bom te ver por aqui!
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Adorei!
Velho pode até ser o corpo, mas o espírito jamais! E pequenas transgressões são essenciais para dar mais sentido à vida.
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Muito bom!
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Obrigada!
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