A porta se fechou quando o telefone tocou. “Não venha” foi o que ela ouviu. Desceu a ladeira com um nó na garganta, no corpo todo. A visão turva, pelos olhos encharcados, embaçava o entorno. Os passos seguintes a colocaram à beira do seu precipício mental. À frente, o abismo das ilusões descontruídas. Pulou porque nada mais havia a fazer. A dor aguda a impulsionou ao nada. Mergulhou fundo no vento, que cortava sua pele e, profundamente, seu coração. Sentiu seu corpo em queda livre e dentro, o vazio. Seu vazio.
Um estrondo mental e o chão se fez presente. Junto com ele, a opressora rigidez de um piso frio e aquelas palavras de novo, contrariando a física e ecoando no vácuo em que tudo se transformara – “não venha”. Não foi. Permaneceu do lado de cá da porta, fechada a qualquer possibilidade de reconstrução. Apagou, uma a uma, as cores do seu arco-íris, a paleta que criou para aquela relação. No breu, viveu o luto da queda.
Não foi fácil ser só dor e solidão. Nunca é. Mas, dizem que o tempo cura. E assim, viu-se reacender. Devagar. Luz a luz. A criatividade, sua maior companheira de aventuras, foi a primeira a entrar pela fresta. Boas ideias surgiram e atravessaram a primeira porta. Percebeu que poderia navegar por outros mares, e assim desmagnetizar a bússola do seu ser, aparentemente quebrada, a apontar por tanto tempo à mesma direção. Descobriu que muito do que atribuía ao outro era, na verdade, seu. Projeções do seu dançar, da sua alegria, da sua energia. Projeções da sua inteligência e da sua capacidade de harmonizar mundos. Projeções de uma paixão que abandonava o escarlate para se tornar uma doce lembrança do agridoce vivido.
Mais portas foram se abrindo, no que entende hoje, como o mais doloroso processo de cura pelo qual passou. Um processo que a fez olhar e revirar suas próprias feridas emocionais, ora cuidadosa, ora impiedosa, sempre atenta à dor que dali surgia. Um processo que a levou à infância inúmeras vezes. Tantos foram os diálogos com sua criança quanto sua própria capacidade de entendê-la, aceitá-la e por fim, acolhê-la em um abraço que somente ela poderia se dar.
Aquela primeira porta que se fechou foi dor, foi vazio. Mas foi também oportunidade de abrir outras fontes de luz, que permitiram a entrada do novo, seu maior combustível. Absorveu. Transformou. A vida ganhou cor novamente, um arco-íris de possibilidades. Sua própria paleta de cores. Reluzindo, porta afora, através da história que viveu.
Aline Serfaty
Revisado por Fabiana Serra
É maravilhoso conseguir renascer das cinzas, da dor, da exclusão. Ouvir que não se faz mais parte do futuro que a pessoa amada desenhou é forte, contundente, mortal.
Mas, e antes de conhecer tal criatura, quem era você? Uma pessoa feliz, cheia de vida, amigos, família legal, independente?
O baile vai seguir e precisamos nos recompor pra não perder a festa da vida.
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Precisava ler seu texto hoje. Enfrentar as reviravoltas para se encontrar, a partir do redemoinho que se arma com uma porta fechada, por quem vivia ao sabor da maré. Não venha. Neste dia o mar não estava pra peixe; novas cores se abriram em arcoíris, prenunciando possibilidades de vida para quem tem novas chaves para caminhar. Vamos em frente! Conto fantástico! Mais um!
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A dor causada pela negativa ajudou a moldar as chaves que abririam novas portas. Obrigada por seus comentários aqui neste blog. Trazem sempre “novas cores que se abrem em arco-íris” enriquecendo minhas reflexões. Realmente, presentes que ganho a cada conto escrito.
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Sim, tão importante aprender a reconstruir e dançar nessa festa maravilhosa que se chama vida.
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De alguma forma estamos sempre recomeçando. O nó na garganta quando a porta se fecha já é o começo do recomeço. Lindo conto!
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Interessante sua perspectiva. Adorei conhecê-la e talvez encara a dor como o começo do recomeço e não como o fim da relação. Obrigada por compartilhar.
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